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CRÓNICA DO CAMPO

Em pleno mês de Agosto, quando o sol bate forte nas cabeças, um pequeno contingente constituído por um sacerdote, quatro seminaristas, dois chefes leigos e vinte e dois rapazes com idades entre os doze e os dezoito anos, soltou as amarras para embarcar numa epopeia mítica: conquistar a Serra da Estrela. Escusado será dizer que, em pleno Agosto deste ano, a zona Este da Serra estava em chamas.

 

Obviamente que uma parte do percurso teve de ser improvisada, pois a rota inicial passava exactamente pela zona “infernal”. No entanto, a conquista do pico mais alto, a Torre (2000m de altitude), permanecia possível e os nossos bravos, sem hesitações, partiram à aventura. Começámos no sopé da Serra, cá em baixo na Covilhã (500m de altitude). Partimos a pé da Estação Ferroviária, primeira paragem: Penhas da Saúde (1500m de altitude).

 

Durante uma semana caminhámos sob o sol abrasador e dormimos quase sempre ao relento. À noite, o frio serrano chegou a atingir os três graus húmidos que só os homens fortes conseguem aguentar. Ressoa ainda na memória a palavra de ordem mais repetida durante esta epopeia veranil: “É para enrijar!”. Mas a dureza das condições foi francamente compensada pela beleza das paisagens. Afinal, era precisamente esse o propósito terapêutico que nos tinha trazido à Serra: a natureza, o silêncio e a solidão. Condições necessárias para a vida interior, vida de contemplação e amor. Na Serra é fácil louvar a Deus porque estamos rodeados da beleza e imensidão da sua criação.

 

Os bravos cavaleiros percorreram montes e vales, houve banhos nas lagoas, Missa diária, catequeses e muitas outras coisas típicas dos campos de férias. Há, porém, uma característica da Rota de São Nuno que a distingue de todas as outras actividades do mesmo género, uma diferença muito específica, numa palavra: Virilidade. Num mundo onde a masculinidade é considerada “tóxica”, tivemos de nos refugiar no coração palpitante da pátria - a Serra da Estrela - para respirar “ares mais puros”. O pelotão dos bravos teve de enfrentar vários desafios. 

 

Além do calor diurno e do frio nocturno, pesou também o cansaço, a fome, a responsabilidade, o jugo da obediência e a aspereza da humildade imposta pelas limitações de cada um. Mais ainda, durante os tempos de silêncio e oração, os bravos tiveram de se enfrentar a si mesmos, os seus pecados, os seus vícios, os seus caprichos, as suas vaidades… enfim, todas as misérias do homem velho que puderam purificar através do sacramento da confissão.

 

Testados os limites físicos, morais e espirituais, os rapazes descobriram uma coisa fundamental. Descobriram que quando alguém é exigente com eles, eles são capazes de ir muito além daquilo que sonhavam ser possível. Esta experiência de auto-superação é uma experiência única que faz dos rapazes Homens. A nossa vontade precisa de ser exercitada e treinada para procurar o Bem, o bem honesto e não o bem útil ou fácil, e acima de tudo para procurar o Bem Supremo que é Deus. 

 

Educar a vontade é uma missão urgente de todos os pais e educadores da juventude, para isso os rapazes precisam de um ideal elevado, precisam de referências e bons exemplos, e nós portugueses temos tantos - de Viriato a Marcelino da Mata, passando por D. Afonso Henriques, São Nuno de Santa Maria, Vasco da Gama e tantos mais! – que não temos desculpa. A rapaziada precisa de heróis, não só de heróis do passado, mas também de modelos virtuosos no presente.

 

O conforto caprichoso em que se instalou a juventude reduziu os rapazes a moluscos: mais parecem lapas cuja rocha é o sofá! A sociedade consumista que põe a sua “felicidade” nos bens materiais e nos prazeres imediatos criou uma geração de seres invertebrados, moles e tristes, gente sem rumo nem ideal. Pois bem, a rocha sobre a qual os cavaleiros de São Nuno edificam a sua vida é a Rocha da Fé Católica, mas a graça não suprime a natureza e foi por isso que, além do Céu, tentámos conquistar a Serra da Estrela. E foi épico! 

 

Tivemos Missa no altar de Nossa Senhora da Boa Estrela, escalámos o Cântaro Magro, banhámo-nos na Lagoa Comprida, bebemos nas fontes do coração da Serra, subimos o vale mítico – por um antigo trilho de tal maneira invadido por silvas que tivemos de rastejar – entre Loriga e Salgadeira, dormimos ao relento na Lagoa do Peixão que fica ao lado do Fragão do Poio dos Cães, trepámos o Poio Estrela, pernoitámos no Chafariz do Rei. Enfim, são muitas as aventuras que ficam por contar…

 

Mas que ninguém se aflija, não foram só intempéries e dificuldades, também houve muita galhofa, cantoria e acção de graças. Mais ou menos a meio da Rota calhou, providencialmente, o dia 14 de Agosto, dia da Batalha de Aljubarrota, dia em que pusemos os castelhanos em debandada, dia de arraial de porrada e dia de festa. Calhou num Domingo, dia do Senhor, por isso, de manhã, tivemos a Santa Missa na Capela da Força Aérea Portuguesa. Capela naturalmente dedicada a Nossa Senhora do Ar. A Missa cantada na liturgia tradicional é uma beleza! 

 

Ajudados pelos meios sensíveis do incenso, do canto gregoriano e dos gestos litúrgicos, os bravos elevaram as suas almas à contemplação das coisas de Deus. No fim da Missa cantámos a plenos pulmões o “Salve Nobre Padroeira” que é o nosso verdadeiro Hino Nacional. Após o Santo Sacrifício descemos em direcção à Lagoa do Covão das Quelhas, lugar onde passámos a tarde. Nesse dia, por si só já muito português, tivemos como farnel do meio-dia: broa e pão com queijo e presunto da Serra.

 

Ninguém passou fome, pois tudo foi liberalmente distribuído: os bravos gozaram de generosas talhadas cortadas a olho por uma navalha experimentada. Como se tudo isto não chegasse, nessa mesma noite, confeccionámos uma riquíssima feijoada. A dita cuja borbulhava fumegante na gamela, feita exclusivamente com produtos locais, alguns deles oferecidos pelos simpáticos beirões que nos deram enchidos como quem dá esmola. Que bela jornada! Querem um maior hino à Portugalidade do que isto? 

 

Se quiserem então tomem: no dia seguinte foi dia 15 de Agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora. Que bem pregou o Padre Fernando, galvanizando as tropas, inflamando-nos o desejo da santidade. Para as memórias empoeiradas relembramos que a imagem de Nossa Senhora (da Conceição) foi coroada por El Rei D. João IV em Vila Viçosa e que, a partir desse dia, nunca mais os monarcas portugueses usaram a coroa. Nossa Senhora é que é a Rainha de Portugal! E nesse dia tivemos a alegria de um encontro com o Senhor Bispo da Guarda que nos deixou uma bela mensagem e nos lançou a sua bênção.

 

Após uma semana perdidos nas fragas graníticas da Estrela, lá estavam os bravos, de volta à Covilhã, quase a chegar à Estação, deixando para trás a sua conquista. Marchavam alegres e sorridentes, o ritmo da passada parecia estar coordenado com o passar das contas do terço. Mais do que a altitude física apreciável em metros, os rapazes tinham sobretudo conquistado uma elevação moral: o título d’Homens. De bandeira desfraldada na mão e entoando cânticos patrióticos regressavam a casa diferentes. Tinham Deus no Coração e uma Serra no bucho. Depois de tantas flexões, depois de tanto escalar e de tanto peregrinar, tinham os braços doridos, as mãos calejadas e os pés em ferida, mas estavam felizes, profundamente felizes. De cabeça erguida, os bravos marchavam com orgulho.

 

Como pobre trovador que sou, sem mais recursos e artifícios para vos deixar uma crónica digna desta semana épica, resta-me recorrer desesperadamente ao relato de um outro conquistador da Serra: “A Estrela, essa guarda secretamente os ímpetos, reflectindo-se ensimesmada e discreta no espelho das suas lagoas. Somente a quem a passeia, a quem a namora duma paixão presente e esforçada, abre o coração e os tesouros. Então, numa generosidade milionária, mostra tudo. As suas Penhas Douradas, refulgentes já no nome, os seus Cântaros rebeldes a qualquer aplanação, os seus vales por onde deslizaram colossos de gelo, nos brancos tempos do quaternário. Revela, sobretudo, recantos quase secretos (…). Fontes duma pureza original, cascatas em que a água é um arco-íris desfeito, e conchas de granito onde se pode beber a imagem. O tempo demorou-se na solidão e no silêncio das suas lombas, e pôde construir à vontade. Abrir ruas, esculpir estátuas, rasgar gargantas, e até deixar desenhado o próprio perfil na curva do raio infinito de cada recôncavo. Perder-se por ela a cabo num dia de neve ou de sol, quando as fragas são fofas ou há flores entre o cervum, é das coisas inolvidáveis que podem acontecer a alguém. Para lá da certeza dum refúgio amplo e seguro, onde não chega a poeira da pequenez nem o ar corrompido da podridão, o peregrino esbarra a cada momento com a figuração do homem que desejaria ser, simples, livre e feliz. Um homem de pau e manta, a guardar um rebanho – criatura ainda impoluta do pecado original, para quem a vida não é nem suplício nem degradação, mas um contínuo reencontro com a natureza, no que ela tem de eternamente casto, exaltante e purificador.” (Miguel Torga, in Portugal). 

 

O pecado original afecta todos os descendentes de Adão - excepto Nossa Senhora e o seu Amado Filho - mas é verdade que os pastores castiços tinham, pelo menos à primeira vista, um ar simples e feliz vivendo segundo os ritmos do Criador. Este campo de férias permitiu-nos recuperar folgo para o resto do ano e forneceu-nos memórias para o resto da vida.

 

Três palavras para fechar esta crónica, três palavras que ficaram gravadas no coração daqueles que fizeram parte da conquista da Serra, palavras gravadas com martelo e cinzel como quem escreve no granito da Estrela: Fé, Virilidade e Tradição.

 

Miguel Castelo Branco, Seminarista da Fraternidade Sacerdotal de São Pedro

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